Márlon Reis, advogado, Doutor em Sociologia Jurídica e Instituições Políticas pela Universidad de Zaragoza, um dos idealizadores da Lei da Ficha Limpa.
A Lei da Ficha Limpa consolidou-se como um dos mais relevantes avanços democráticos do ordenamento jurídico brasileiro. Sua edição resultou de uma mobilização social sem precedentes, respaldada por mais de um milhão e meio de assinaturas de eleitores e aprovada pelo Congresso Nacional, conferindo à norma inquestionável legitimidade popular. A lei reformulou o regime de inelegibilidades, ampliando o espectro de situações em que se impõe o afastamento de candidatos que tenham praticado atos incompatíveis com a probidade administrativa e a lisura do pleito. Esse arcabouço normativo, ao longo dos anos, vem sendo reafirmado pelo Tribunal Superior Eleitoral e pelo Supremo Tribunal Federal, que lhe conferiram status de mecanismo essencial para a proteção do processo eleitoral.
Entretanto, o Brasil presencia, atualmente, uma tentativa de desmonte desse avanço. A discussão em curso no Congresso Nacional coloca em risco a eficácia da Lei da Ficha Limpa, promovendo uma flexibilização injustificada dos critérios de inelegibilidade. O Projeto de Lei Complementar nº 141/2023 propõe reduzir o prazo de inelegibilidade, hoje fixado em oito anos, para apenas dois anos nos casos de condenação pela Justiça Eleitoral por abuso de poder econômico ou político. Na prática, essa mudança permitiria que agentes públicos que tenham cometido graves infrações eleitorais retornassem rapidamente à disputa, comprometendo o efeito dissuasório da norma e fragilizando a proteção da normalidade e legitimidade das eleições.
Ainda mais deletério ao regime de inelegibilidades é o Projeto de Lei Complementar nº 14/2025, que impõe uma exigência adicional para a aplicação da inelegibilidade por abuso de poder: a necessidade de condenação criminal pelos mesmos fatos. Essa alteração, caso aprovada, tornaria praticamente inaplicável a sanção, pois muitas das condutas abusivas em matéria eleitoral não encontram correspondência no Direito Penal. Ademais, tal exigência implicaria a necessidade de tramitação de dois processos distintos e independentes, um na Justiça Eleitoral e outro na Justiça Comum, retardando o afastamento de candidatos que já tenham sido condenados pelo órgão competente para aferir a regularidade do pleito.
O cerne da questão reside no fato de que essas propostas violam frontalmente o princípio da vedação ao retrocesso, amplamente reconhecido pela doutrina dos direitos fundamentais e incorporado ao sistema jurídico brasileiro. Esse princípio impede que avanços legislativos na proteção de direitos sejam desconstituídos sem a existência de uma razão jurídica ou política idônea. O Supremo Tribunal Federal já reconheceu a aplicabilidade desse princípio em diversas áreas, especialmente em temas ambientais e sociais, como a proteção de populações vulneráveis e a implementação de políticas públicas essenciais. Em matéria de direitos políticos e eleitorais, a sua incidência é igualmente relevante, pois o fortalecimento das normas de proteção à democracia não pode ser substituído por retrocessos que fragilizem os mecanismos de integridade eleitoral.
O Supremo Tribunal Federal, ao validar a constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, reconheceu sua essencialidade para a promoção da integridade no processo eleitoral. Ao modular a inelegibilidade de maneira rigorosa, a norma desestimula condutas abusivas e impede que indivíduos que comprometeram a legitimidade do pleito voltem a se candidatar em curto espaço de tempo. Assim, as propostas legislativas que buscam afrouxar esse regime não encontram respaldo na jurisprudência constitucional e devem ser rechaçadas por todos aqueles que zelam pela integridade do sistema político.
A evolução do Direito Eleitoral deve sempre visar o aprimoramento dos mecanismos de proteção à democracia, jamais sua fragilização. Não se pode admitir a redução das barreiras à elegibilidade sem que haja qualquer indicação de solução para os desafios enfrentados pela Lei da Ficha Limpa. O que se exige do legislador é responsabilidade para fortalecer a transparência e a moralidade na disputa eleitoral, e não a criação de subterfúgios que facilitem o retorno ao poder de indivíduos que já demonstraram desprezo pelas regras democráticas. A promoção da ética na política e a proteção da lisura dos pleitos são imperativos que não admitem retrocessos.
Seguramente, a transparência, a integridade moral e a efetividade dos interesses coletivos e da cidadania são essenciais para que se possa reconhecer um processo eleitoral democrático. A violação de um desses cânones invalida a representação política. Portanto, deve-se exigir do ator político transparência, integridade moral e efetividade democrática.